![]() |
Descrição para cegos: imagem contém a bandeira dos Estados Unidos no fundo. Na parte superior esquerda, o nome Netflix e, no meio, o nome A 13ª Emenda. |
Por Gabriel Neves
Tem-se
a impressão, ou ao menos teve-se durante um tempo, de que conteúdos veiculados
nas grandes indústrias do audiovisual possuem potencialidade para ser apenas
balela hollywoodiana (lê-se narrativa clássica) para “encantar” um certo tipo
de telespectador passivo. A Netflix, porém, está aí para mostrar que isso não é
totalmente verdade, apresentando, em sua plataforma, o documentário A 13ª Emenda, que fala sobre uma
política de segregação nos Estados Unidos e que põe, como uma dessas políticas,
o encarceramento em massa - assunto de segurança pública.
O
documentário de Ava Duvernay tem cerca de 100 minutos e aborda questões
importantíssimas e decisivas para a vida de comunidades marginalizadas nos
Estados Unidos. Além do encarceramento em massa, uso de mitologia para
justificar decisões desproporcionais e a relação entre grandes empresas e o
Estado com fins de exploração de determinadas pessoas também são alguns dos
tópicos do longa.
Logo
no início, o documentário trata de mostrar dados sobre o absurdo contingente de
pessoas presas nos Estados Unidos, sendo um país com 5% da população mundial e
25% da população carcerária do mundo. Isto é o mesmo que dizer que 1 a cada 4
presos do mundo está no país onde o maior símbolo é a estátua da liberdade.
Após isso, surgem as necessidades de se reduzir o sistema prisional e de um entendimento
mais amplo sobre a sociedade.
“A história não é algo
que acontece por acaso. Somos os produtores da história que nossos antepassados
escolheram [...] mas estamos todos aqui juntos, os produtos destas escolhas e
temos que entender isso, para podermos fugir disso [do mau julgamento dos
fatos].”
A informação, dada no documentário, evidencia o primeiro
corte do longa, trazendo a necessidade de uma compreensão histórica, para
entender e debater a situação carcerária nos EUA, sendo sucedido pela explicação
da origem da 13ª Emenda, que diz que todo homem é livre, acompanhada de uma
cláusula que exibe a exceção à regra e põe em destaque o termo criminoso, o
qual pode ter diferentes conceitos, dependendo do tempo histórico ou, mais
ainda, das necessidades das classes dominantes da época.
Jelani Cobb, professor de estudos afro-americanos da
Universidade de Connecticut, diz, por exemplo, que a escravidão, antes da
guerra civil, era tida como um sistema econômico e, depois da guerra, foi
abolida, causando crise econômica, negros livres e levantando uma grande
questão: “o que fazer com essas pessoas e como reconstruir a nossa economia? ”
A partir dessa questão, a 13ª Emenda foi utilizada
estrategicamente para prender os negros alegando-se, por exemplo, ociosidade ou
vadiagem, e fazer deles escravos novamente, trabalhando de graça para o Estado
e reconstruindo a economia do país.
Tudo isso preparou a época para a origem do mito da
criminalidade negra, que associou a imagem do negro a uma propensão ao crime,
por meio de representações na indústria do entretenimento, a fim de mantê-los
trabalhando como escravos e sustentando o país das liberdades individuais.
O filme O Nascimento
de uma Nação evidencia uma imagem depreciativa dos negros, como se fossem
animais, além de romantizar a organização racista Klu Klux Klan. A obra de D.W. Griffith contribuiu para legitimar o
preconceito, a segregação e a perseguição aos negros. Neste caso específico,
segundo o próprio documentário, a vida imitou a arte, de forma em que negros passaram
a ser mortos constantemente por pessoas incentivadas pela ideologia da Klu Klux
Klan. Quando esses homicídios começaram a ser considerados inaceitáveis, houve
um período de segregação institucional, o Jim Crow, um tipo de “terrorismo explícito” que retirava até o
direito de votar dos afro-americanos, por meio de mudanças na legislação.
Em seguida, o contexto demandou a aparição de movimentos de
ativistas dos direitos civis, buscando sempre a mudança do conceito de
criminalidade e o entendimento de que os negros também são seres completos e
complexos assim como os brancos, e não apenas pessoas violentas com imagens
depreciadas por racistas e aproveitadores.
A conquista da Lei dos Direitos Civis beneficiou o povo negro
e oprimido dos Estados Unidos. Infelizmente, no mesmo momento das conquistas
dos direitos, a criminalidade aumentou, fazendo com que as pessoas associassem
a conquista com as mazelas que estavam ocorrendo na sociedade.
Vieram anos muito difíceis acompanhados pela utopia
neoliberal, sendo bem erguida, nos anos 70, por Nixon, que iniciou a política
de “tolerância zero” e a guerra às drogas, já havendo um aumento considerável
da população carcerária, saindo de 357.292, em 1970, para 513.900, em 1980.
Com Reagan, a guerra às drogas foi efetivamente implementada,
sendo um disfarce para o combate às comunidades de cor. Nessa mesma época, o
país estava passando por uma crise econômica, então Reagan cortou gastos na
educação e saúde, por exemplo, mas aumentou em três vezes o orçamento para a
polícia, fazendo com que a população carcerária desse um salto para um total de
759.110 presos.
A mídia banalizou a retórica da guerra às drogas, além de
apresentar diariamente nos jornais um “desfile” de negros sendo presos e
apresentados como “superpredadores”.
Os candidatos, na época, sabiam que, para ser
eleitos, bastavam apoiar a política de tolerância zero e discursar contra os
“criminosos”. Para ganhar as eleições, por exemplo, George Bush, presidente dos
EUA de 1989 a 1993, pai de George W. Bush, fez uma campanha voltada ao combate
à criminalidade, trazendo o caso Wille Horton para denegrir a imagem do adversário e
recolocar na sociedade norte-americana o medo primitivo. Nesse período, houve
outro aumento da população carcerária estadunidense, passando a um total de
1.179.200 presos.
Na mesma perspectiva e estratégia para ganhar a eleição para
presidente, os Democratas se elegeram com Bill Clinton, uma vez que não era
viável concorrer sem ser duro contra o crime. Após se eleger, o presidente sancionou
algumas leis, como, por exemplo, “3 strikes”, que significava que depois de
cometer três crimes o criminoso pegaria prisão perpétua.
Dessa maneira, como o sistema é muito perverso para a
comunidade de cor, com menos Estado-social e mais Estado-penal, como diria Loic
Wacquant, no livro “As prisões da miséria”, de 1999, obviamente as pessoas que
mais eram um ponto fora da curva seriam mais “contempladas” com essa nova
política de cárcere. No período, a população carcerária pulou para 2.015.300.
Apesar de toda essa política estar no campo do preconceito ou
das vontades de uma classe dominante nos Estados Unidos, o problema vai se
expandindo e criando ramificações. Como o mercado se aproveita de toda e
qualquer maneira para fazer dinheiro, o encarceramento em massa mostrava-se uma
mina de ouro para as empresas.
Grupos empresariais começaram a integrar o campo da política
por meio do Conselho Americano de Intercâmbio Legislativo (Alec, na sigla em
inglês), que fornece modelos de legislação para legisladores, fazendo com que
projetos de lei criados pelas próprias empresas fossem apresentados e aprovados
no congresso.
“Defenda seu território”, que permitia um proprietário atirar
quando estivesse se sentindo ameaçado, e a já citada “3 strikes” foram leis
aprovadas graças a essa estratégia, favorecendo empresas como a Wallmart,
vendedora de armas e munições, e a CCA, empresa penitenciária.
Por fim, sendo parcialmente apresentada a longa história afroamericana
nos Estados Unidos, percebe-se que, ao longo da história do país, houve uma
política de segregação dos negros: escravidão, aluguel de presos, Jim Crow e
encarceramento em massa são as demonstradas no documentário, deixando ainda a
preocupação e a dúvida de qual será a próxima “política de segurança pública”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário